“Seu ex-marido é um terrorista emocional, é capaz de dizer as piores barbaridades sem sentir culpa, porque em sua lógica parece normal. (…) Ele é um talibã e você as Torres Gêmeas. Lição de Vida: não se negocia com terroristas”.
Filme: “No estoy loca”, Chile
Nesta comédia romântica chilena, em algum momento nos damos conta de que a personagem central estava em um relacionamento abusivo. Ela acaba indo parar em uma clínica psiquiátrica, internada por seu ex-marido. A história se desenvolve durante sua internação.
Inúmeros filmes e livros abordam esse tema. Com diferentes estratégias, eles nos mostram que a violência nas relações pode ser universal e devastadora. Sabemos hoje que pode acontecer entre mães e filhos, com um “amigo” invejoso, no trabalho com um chefe ou colega, porém ainda é mais prevalente nas relações amorosas e as principais vítimas são as mulheres.
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Mas como saber se estamos em um relacionamento assim? Hoje vou dar as dicas para identificar os sinais de uma das formas de relacionamento abusivo mais comuns, muitas vezes sutil, que traz prejuízos sociais e profissionais: Gaslighting.
O que é Gaslighting?
O Gaslighting é definido como o abuso emocional ou psicológico que causa dano mental ou emocional. A vítima fica em dúvida da própria sanidade, de sua memória e da sua percepção. Em 2015 o governo britânico reconheceu o Gaslighting como um ato criminoso definido como controle coercivo.
O termo vem de “Gas light” uma peça escrita em 1938 e conta a história de um casal que, no início, tem uma relação “perfeita” e apaixonada, mas que logo vai se tornando perigosa à medida que o marido começa a fazer uma série de atos para que sua esposa pense que está louca, isolando-a de família e amigos próximos, enfraquecendo sua autoestima e com uma única finalidade roubar-lhe toda a fortuna.
Já perdi a conta do número de vezes em que escutei no consultório: “Ele disse que estou exagerando, que sou louca, que estou na TPM, que sou uma desequilibrada. Será que isso é verdade? Estou começando a acreditar que sim”.
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Será que o seu parceiro é controlador?
E sabe qual a importância em falarmos sobre o tema? Segundo documento do governo americano de 2018, a violência doméstica, familiar, do ambiente profissional e entre relacionamentos de amizade e amorosos tem sido grande responsável pelo adoecimento como depressão, pânico/ansiedade, estresse pós-traumático e em casos mais graves o risco de suicídio.
Como psiquiatra e mulher, é meu dever falar sobre o assunto para evitar que aumente ainda mais o número de situações que descrevi acima, não só em meu consultório, mas no de outros colegas também.
Quer saber quais são os principais sinais de que você pode ser uma vítima? Listo os mais comuns abaixo.
Como saber se você está em um relacionamento abusivo
1. Frequentemente você se questiona se está louca ou confusa.
2. Você não vê mais familiares e amigos.
3. Você vive pedindo desculpas para seu parceiro.
4. Você se pergunta se é sensível demais.
5. Antes: confiante, extrovertida, alegre. Agora: triste, cabisbaixa e envergonhada.
6. Quando fala com amigos/familiares, ou omite o que acontece de ruim na relação amorosa ou se culpa por conflitos e dá desculpas para o companheiro fazer as coisas terríveis que faz.
7. Você tem dúvidas de si mesma.
8. Você se questiona se é uma pessoa digna de amor, boa o suficiente ou “está a altura de seu parceiro”.
Um artigo publicado na Lancet Psychiatry em 2018 afirma que é muito difícil para a vítima se autoafirmar. Os momentos de alguma força são insustentáveis, uma vez que isolada de sua rede de apoio fica difícil de confiar em si mesma completamente. É muito importante destacar que o isolamento por vezes acontece causado pela própria vítima, que não quer ouvir ou “saber” que está em um relacionamento ruim e depois é reforçado pelo abusador.
No fim de 2018 participei como palestrante do TEDxSãoPaulo e tive a oportunidade de conhecer Jessica Aronis, uma mulher de 28 anos, vítima de um relacionamento abusivo e que serve de inspiração para tantas outras mulheres que, diferentemente dela, ainda têm medo de sair deste círculo tóxico.
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A decisão de encerrar um relacionamento tóxico, aliás, nem sempre é fácil. A vítima tende a ser isolada do convívio com amigos e familiares e passa a ver o abusivo como única pessoa com quem pode contar, o que torna o término ainda mais difícil. Força, coragem e apoio são as três principais “ferramentas” de quem quer sair do círculo vicioso de um relacionamento abusivo.
Jessica, felizmente, soube reconhecer os sinais que indicavam que seu parceiro praticava o gaslighting (e chegou à agressão física de fato). A pedido da mãe, procurou a ajuda de uma psiquiatra e essa profissional foi fundamental para a mudança de rumo da história. Jéssica conseguiu terminar a relação e usa hoje a sua voz para alertar e ajudar outras mulheres que estejam passando pela mesma situação. Se você se encontra ou conhece alguém que esteja sofrendo com o gaslighting ou qualquer situação abusiva, não feche os olhos. Esqueça o ditado que diz que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Finalizo a coluna dividindo com vocês este link da Women’s Health, com sinais que mostram que o que é um relacionamento abusivo. Compartilhe com pessoas que você possa ajudar e leia você também, se este for o seu caso.
Dicas de leitura/filmes/livros
1. Bohemian Rhapsody (2019): Fred Mercury em um momento da carreira foi isolado de seus amigos por um companheiro ambicioso.
2. Gaslight (1944) de George Cukor. Com Ingrid Bergman: filme que deu origem ao termo.
3. No Stoy Loca (2018), de Nicolás Lopez, disponível na Netflix: Carolina descobre não poder ter filhos no mesmo dia em que seu marido a troca pela melhor amiga. Com tantas reviravoltas, a personagem acaba sendo internada em um hospital psiquiátrico.
4. Big Little Lies (2017), disponível na HBO: A personagem de Nicole Kidman está casada com um marido violento.
5. Jessica Jones (2015), uma série da Netflix: Uma heroína que é manipulada pelos poderes de um vilão, que consegue entrar na mente da protagonista
6. TED Talk: How to deal with Gaslighing Ariel Leve
7. TEDxSP: Jéssica Aronis
8. Livro: A louca não sou eu de Beatriz Manfredini e Giuliana Muneratt
9. Livro: O fenômeno Gaslighting de Stephanie Moulton Sarkis.
Um abraço e até a próxima,
Dra Ana Paula Carvalho
*Ana Paula Carvalho é Médica Psiquiatra, Mestre em Psiquiatria pela Escola Paulista de Medicina, palestrante TEDx e a primeira psiquiatra brasileira com certificação internacional em Medicina do Estilo de Vida pelo International Board of Lifestyle Medicine (Board Certified Lifestyle Medicine Physician).